sexta-feira, 25 de março de 2016

Charles Bukowski: Citações do livro misto-quente





Charles Bukowski foi um poeta, contista e escritor. Nascido na Alemanha em 1922, mudou-se ainda criança com os pais para os Estados Unidos, indo morar na cidade de Los Angeles. É considerado como um dos "malditos" da literatura norte-americana, sendo comumente relacionado à geração Beat, muito embora não tivesse qualquer relação com estes. Toda a sua obra - o que incluí inúmeros romances, livros de contos e poesias, alguns traduzidos para o português pela editora L&PM - é marcada por um forte conteúdo autobiográfico e existencialista. Sua prosa rápida, ácida, satírica e crítica, cativou e segue cativando legiões de seguidores por todo o mundo. Em sua narrativa, imperam expressões de baixo calão, situações constrangedoras, lugares insalubres e personagens decadentes, como beberrões e prostitutas. Seu estilo agressivo, é, ao mesmo tempo uma martelada no mármore divinal dos alicerces da moralidade, e um afago aos sentidos dos leitores que se permitem perambular pelas sarjetas e cortiços aos quais suas linhas certamente nos conduzem.
  Cético e pessimista, Charles Bukowski desde pequeno não se enquadrava nos padrões da sociedade, e, sob a percepção da pobreza dos pais, sofria de um autoexilamento e uma compulsão pela solidão - prisma que se faz presente em seus escritos. Alcoólatra e problemático, dedicou toda sua vida à escrita e a embriagar-se; vez ou outra, também, tentando adequar-se em empregos dos quais logo era demitido ou abandonava. Criando um alter-ego chamado Henry Chinaski, Bukowski escreveu sua autobiografia, que está dividida em quatro romances clássicos: Misto-Quente, Factótum, Cartas na Rua, e Mulheres. Misto-Quente, livro este que trataremos aqui, é um resgate memorialista das lembranças mais antigas do autor, desde o seu nascimento até o seu ingresso no ensino primário, passando pelo fundamental e médio, abordando a passagem da infância à adolescência, seu primeiro emprego, seu contato inicial com a literatura e suas primeiras tentativas como escritor. 

Sobre suas memórias mais arcaicas, notemos que o autor começa com: 

"A primeira coisa de que me lembro é de estar debaixo de alguma coisa. Era uma mesa, eu via uma das pernas das pessoas e um tanto da toalha que pendia no ar. Era escuro lá em baixo, eu gostava de ficar por ali. Isto deve ter sido na Alemanha. Eu devia ter um ou dois anos de idade. Era 1922. Eu me sentia bem debaixo da mesa. Ninguém parecia saber onde eu estava. A luz do sol me agradava. As pernas das pessoas. A luz do sol escorria sobre o tapete, sobre as pernas das pessoas. A luz do sol me agradava. As pernas das pessoas eram desinteressantes, diferentemente da toalha que pendia da mesa, diferentemente da perna da mesa, da luz do sol." Pág. 11

No meio de suas memórias mais antigas, como a da luz do sol incidindo sob o chão enquanto ele escondia-se debaixo da mesa - que beira estados oníricos de consciência dado O seu largo afastamento no tempo , Bukowski logo nos revela um dos aspectos perturbadores da formação de sua personalidade, e que irá atormentá-lo por boa parte de sua vida, que é a relação conturbada com um pai violento e autoritário:

"Tinha começado a antipatizar com meu pai. Ele sempre estava zangado com alguma coisa. Onde quer que fôssemos, ele dava um jeito de discutir com as pessoas. Mas a maioria parecia não se assustar com sua figura; as pessoas normalmente o encaravam, calmamente, o que o deixava ainda mais exaltado, Se fôssemos comer fora, o que raramente acontecia, ele sempre encontrava algo de errado na comida e algumas vezes se recusava a pagar." Pág.28

Outro aspecto digno de nota em Misto-Quente, é o amplo espaço que o autor dá ao ambiente escolar, denotando a importância da escola e da convivência com outras crianças em sua formação. Narra tudo o que lhe fora marcante nos anos em que estudava:  lembranças boas e também lembranças ruins, como se verá nas transcrições abaixo:

"Foi no jardim de infância que conheci as primeiras crianças da minha idade. Elas pareciam muito estranhas, sorriam e conversavam e pareciam felizes. Não gostei delas. Sempre me sentia enjoado e o ar tinha um aspecto estranhamente calmo e puro. Pintávamos com tinta guache. Plantávamos sementes de rabanete no jardim e algumas semanas mais tarde os comíamos com sal. Gostava da senhora que ensinava no jardim de infância, gostava mais dela do que dos meu pais." Pág. 30

"O ensino fundamental foi diferente, da primeira à sexta série, algumas crianças tinham doze anos de idade, e todos vínhamos de bairros pobres [...] Certa vez, quando eu estava saindo do banheiro, vi um garotinho bebendo água no bebedor. Por trás dele veio um outro, grandalhão, e enfiou a cabeça dele no dispositivo. Quando o garotinho ergueu a cabeça, alguns de seus dentes estavam quebrados, e da boca lhe escorria sangue, havia sangue por todo o bebedor.
- Conte o que aconteceu pra alguém - disse o garoto mais velho -, e eu realmente acabo com a sua raça." Pág.30

"Todas as tardes depois da aula havia uma briga entre dois alunos mais velhos. Os combates sempre se davam atrás da cerca dos fundos, onde nunca havia um professor por perto. E as lutas nunca eram justas; sempre era um garoto maior contra outro menor. O maior sempre acertava o outro com os punhos, encurralando-o contra a cerca. O garoto menor tentava revidar, mas era inútil. Logo seu rosto estava coberto de sangue, com sangue escorrendo pela camisa. O menor apanhava calado, sem jamais implorar, sem nunca pedir piedade. Por fim, o garoto maior se afastava e tudo estava terminado e todos os outros garotos caminhavam para casa lado a lado com o vencedor." Pág. 31

Se o ambiente escolar era por vezes hostil e o aterrorizava, em sua casa as coisas eram ainda piores, pois, se na escola podia fugir dos valentões que o perseguiam, em casa não podia escapar de um pai que lhe espancava constantemente. Frustrado com a falta de emprego e a pobreza da recessão nos Estados Unidos pós-1929, o pai de Bukowski constantemente fugia ao controle descontando sua raiva no filho. Certa vez, após apanhar até quase ir ao desmaio, Charles Bukowski teve de jantar em sua companhia, o que deu origem também a uma das passagens marcantes do livro, em que ele escancara a hipocrisia dos próprios pais:

"Comecei a comer. Era terrível. Sentia como se os estivesse comendo, comendo as coisas em que acreditavam, aquilo que eles eram. Não mastiguei os alimentos, engoli-os apenas, como que para me livrar da obrigação. Nesse meio tempo, meu pai falava de como aquela comida estava saborosa, de como tínhamos sorte de ter o que comer enquanto a maior parte das pessoas no mundo, e mesmo muitos americanos, viviam na miséria e passavam fome." Pág. 45

E sobre a situação econômica caótica, o autor segue rememorando:

"Todas as manhãs minha mãe seguia para seu emprego malpago e meu pai, que nem mais trabalho tinha, também saía junto com ela. Ainda que a grande maioria de nossos vizinhos estivesse desempregada, meu pai não queria que pensassem que ele era como eles, um desempregado. Desse modo, ele pegava o carro a cada manhã, sempre no mesmo horário, e saía como se estivesse indo trabalhar. Então, ao anoitecer, retornava como se tivesse cumprido o expediente.Isso era bom, porque eu tinha o lugar só para mim. Eles trancavam a casa, mas eu conhecia uma maneira de entrar. Eu destravava a porta de tela com um cartão." Pág. 123

No decorrer da autobiografia, as passagens que narram os espancamentos que ele sofria são abundantes. Porém, quando amadurece, certa feita enfrenta o pai, o que pode ser entendido como um período de transição. A perda da inocência, a superação e a coragem de alguém que cresceu e deixou de ser indefeso. A passagem para a adolescência do autor é narrada de forma emocionante:

"A correia desceu. Era o mesmo som explosivo de sempre, a mesma dor [...] Acertou-me outra lambada. Mas as lágrimas não brotavam. Meus olhos, estranhamente, estavam secos. Pensei em matá-lo. Devia haver um jeito de acabar com a raça dele. Dentro de alguns anos, eu poderia espancá-lo até a morte. Mas eu queria fazer isso agora. Ele era pouco mais que nada. Devo ter sido adotado. Me aplicou mais um golpe. A dor continuava lá, mas o medo que até então eu sentira havia desaparecido. A correia voltou a me acertar. O banheiro não mais ficava embaçado. Eu podia ver tudo claramente. Meu pai parecia ter notado a diferença em mim e começou a golpear com mais força, vez após vez, e quanto mais ele batia menos eu sentia. Era quase como se ele estivesse na posição de vítima. Alguma coisa acontecera, alguma coisa mudara. Meu pai parou, ofegante, e ouvi quando ele depositou a correia no lugar. Foi saindo porta afora. Voltei-me.
- Ei- eu disse.
Meu pai se virou e ficou me olhando
- Bata mais um pouco - eu disse-, se isso faz com que você se sinta melhor.
[...] Meu pai se virou e saiu. Ele sabia. Foi a última surra que levei. Dele." Pág. 133

E com a adolescência, vieram outros problemas...

"O tempo do colégio passou com rapidez suficiente. Por volta da oitava série, indo para a nona, comecei a ter acne. Muitos dos caras tinham esse problema, mas não no mesmo grau que eu. Meu caso era realmente terrível. Era o mais grave em toda a cidade. Eu tinha espinhas e erupções por toda a face, costas, todo pescoço e um pouco no peito" Pág. 134

"Concluí o trimestre, mas minhas espinhas tinham piordo ainda mais. Elas eram do tamanho de nozes e cobriam minha face. Eu sentia muita vergonha. Algumas vezes, em casa, eu parava em frente ao espelho do banheiro e estourava uma das espinhas. Pus amarelo espirrava no espelho. E então saía um pequeno caroço branco. De um ponto de vista escatológico, era impressionante que toda aquela porcaria pudesse caber ali dentro. Mas eu sabia como era difícil para as pessoas terem que me olhar." Pág 150

A falta de aceitação, a miséria e a exclusão, faziam com que o autor refletisse sobre a vida, e que se tornasse cada vez mais crítico. E ser crítico, implicava em ser cada vez mais mau-humorado, cético e pessimista. Sua escrita reflete isso, e, em Misto-Quente este mistério e este elemento no estilo de sua obra é desvendado:

"Aqueles caras ricos gostavam de passar zunindo em seus carros, pra lá e pra cá, velozmente, dando cavalinhos de pau, cantando pneus, seus carros faíscando sob os raios de sol enquanto as garotas se amontoavam em volta. As aulas eram uma piada, todos estavam a caminho de uma universidade qualquer, as aulas eram apenas uma rotina divertida, eles tiravam boas notas, você raramente os via com livros, você só os encontrava cantando mais e mais pneus, arrancando com seus carros abarrotados de garotas sorridentes. Eu os observava com meus cinquenta centavos no bolso. Eu sequer sabia como guiar um carro." Pág. 168.

"Podia ver a estrada a minha frente. Eu era pobre e ficaria pobre. Mas eu não queria particularmente dinheiro. Eu sequer sabia o que desejava. Sim, eu sabia. Queria algum lugar para me esconder, um lugar em que ninguém tivesse que fazer nada. O pensamento de ser alguém na vida não apenas me apavorava mas também me deixava enojado. Pensar em ser um advogado ou um professor ou um engenheiro, qualquer coisa desse tipo, parecia-me impossível. Casar, ter filhos, ficar preso a uma estrutura familiar. Ir e retornar de um local de trabalho todos os dias. Era impossível. [...] Preferia ser um lavador de pratos, retornar para a solidão de um cubículo e beber até dormir." Pág. 212

Outra passagem marcante e obrigatória em Misto-Quente é o baile de formatura. Sem um par para dançar e sem roupas para vestir, o autor narra que decidiu ir para conferir de longe o que lá se passava. Esta é outra passagem transitória. O fim do ensino médio, o término de um ciclo, e para ele, o futuro não era bem vindo.Mas, se o amor lhe era até então um sentimento desconhecido, o ódio, este velho amigo, lhe faria jurar que um dia seria alguém na vida. Muitas vezes, se é um bom personagem, porém um escritor de poucas referências, isto possivelmente acarretará num fracasso literário. Bukowski a este exemplo, era um bom escritor, e tinha boas histórias e bons relatos. É impressionante sua capacidade de expressar sentimentos vividos por ele anteriormente, e é impressionante a sua capacidade de nos prender e nos instigar com suas palavras:

"Então vislumbrei o reflexo do meu rosto a admirá-los - marcado por espinhas e cicatrizes, minha camisa surrada. Eu era como uma fera da selva atraída pela luz, olhando para dentro. Por que eu tinha vindo? Sentia-me mal. Mas continuava assistindo a tudo. A dança terminou. Houve uma pausa. Os casais trocavam palavras com facilidade. Era algo natural e civilizado. Onde eles tinham aprendido a conversar e a dançar? Eu não podia conversar ou dançar. Todo mundo sabia alguma coisa que eu desconhecia. As garotas eram tão lindas; os rapazes tão elegantes. Eu ficaria aterrorizado só de olhar para uma daquelas garotas, o que dizer de ficar sozinho em sua companhia. Mirá-la nos olhos ou dançar com ela estaria além das minhas forças [...] De repente contudo, aquilo se tornou demais para mim. Eu os odiei. Odiei sua beleza, sua juventude sem problemas e, enquanto os via dançar por entre o mar de luzes mágicas e coloridas, abraçados aos outros, sentindo-se tão bem, pequenas crianças ilesas, desfrutando de sua sorte temporária, odiei-os por terem algo que eu ainda não tinha, e disse para mim mesmo, repeti para mim mesmo, algum dia serei tão feliz quanto vocês, esperem para ver." Pág 214/215

Logo após o término da escola, o autor narra as tentativas de arrumar um trabalho, até o momento em que arruma; seguindo a linha de sua biografia, ele carrega os mesmo anseios e a mesma desesperança para os novos ambientes nos quais perambula. Se antes seus problemas se fixavam na escola e em casa, agora os mesmos dilemas eram reelaborados no ambiente de trabalho. A mesma desesperança, a mesma desilusão e a velha sede de justiça:

"Agora, pensei, empurrando meu carrinho, tenho esse emprego. É assim que as coisas devem ser? Não é de se espantar que homens assaltem bancos. Há muitos trabalhos por demais aviltantes. Por que, diabos, eu não era um juiz de uma corte superior ou um pianista de concerto? Porque isso exigia treinamento e treinamento custava dinheiro. Mas, de qualquer forma, eu não queria ser nada na vida. E nisso, certamente, eu estava sendo bem-sucedido." Pág. 232

"Em casa era sempre a mesma coisa. A pergunta nunca era feita antes que o jantar tivesse sido iniciado. Então meu pai perguntava:
-Encontrou trabalho hoje?
-Não.
- Procurou em todos os lugares?
-Em muitos. Cheguei a passar nos mesmos lugares duas ou três vezes.
-Não acredito
No entanto, era verdade. Como também era verdade que muitas empresas colocavam anúncios de emprego diariamente nos jornais, quando, de fato, não havia oferta alguma. Isto dava ao departamento pessoal das empresas algo para se fazer. Em contrapartida, isto também fodia com a esperança de um monte de pessoas desesperadas.
- Você vai conseguir um emprego amanhã, Henry - sempre dizia minha mãe..." Pág. 243

Como o tempo passava e Bukowski não conseguia encontrar nenhum emprego, os problemas com o pai ressurgiram, até o dia em que seu pai encontra os contos e poemas que ele escrevia. Surta dizendo que seu filho não poderia escrever algo daquele tipo, e joga as coisas do filho pela rua, expulsando-o de casa. É o fim de outra etapa em sua vida: A saída da casa dos pais, e o seu ingresso total no mundo dos cortiços e das sarjetas - que mais tarde serviriam de conteúdo em sua literatura, tornando-o célebre por suas narrativas e suas reflexões:

"Ela corria na minha frente enquanto eu continuava na direção de casa. Então eu vi: minhas coisas estavam todas espalhadas pelo gramado, todas as minhas roupas, as sujas e as limpas, a mala aberta, meias, camisas, pijamas, um velho roupão, tudo jogado ali, sobre o gramado e sobre a rua. E vi meus manuscritos sendo soprados pelo vento, caindo na sarjeta, dispersos por toda parte." Pág 273

Este é praticamente o fim do livro. O autor adentrando a fase adulta, no contexto da segunda guerra mundial. Sem dinheiro, sem um lar, vagando pelas ruas à procura de emprego, pulando de cortiço em cortiço e tropeçando de bar em bar. Resumido em breves passagens aqui, Misto-Quente não pôde ser minímamente elucidado, pois, talvez seja esta, a obra prima do autor. O relato autobiográfico desta primeira etapa de sua vida, transforma este livro, numa verdadeira obra de formação. O romance "Factótum" narra a continuação desta história, nos mostrando como foi o resto da vida desta personagem nos empregos que conseguia, e de como ela aprimorava sua experiência como escritor. Após "Factótum", o romance que dá prosseguimento à vida do autor é "Cartas na Rua", e narra o longo período em que ele fora trabalhador na agência de correios norte-americana, sendo este o único emprego que ele permanecera por mais de um ano. Nele, a fase narrada da vida do autor é entre 30 e 36 anos, fase em que ele teve o primeiro conto publicado. E por fim, há o livro de título "Mulheres", narrando a vida de sucesso do autor, como um escritor já consagrado. 

Para desfecho, segue uma última transcrição de Misto-Quente:

"Também sabia , uma percepção que eu tinha desde a infância, que havia algo de estranho em mim. Era como se meu destino fosse ser um assassino, um ladrão de banco, um santo, um estuprador, um monge, um ermitão. Precisava de um lugar isolado para me esconder. Os cortiços eram lugares nojentos. A vida das pessoas sãs, dos homens comuns era uma estupidez pior do que a morte. Parecia não haver alternativa possível. A educação também parecia uma armadilha. A pouca educação que eu tinha me permitido havia me tornado ainda mais desconfiado. O que eram médicos, advogados, cientistas? Apenas homens que tinham permitido que sua liberdade de pensamento e a capacidade de agir como indivíduos lhes fosse retirada. Voltei para meu barracão e enchi a cara." Pág 305


BUKOWSKI, Charles. Misto-Quente, Porto Alegre: L&PM, 2013.